A reinvenção de uma paisagem

A fotografia é um pretexto para viajar, ou é a viagem que justifica o vício de fotografar? No seu protótipo convencional, o fotógrafo se confunde facilmente com o turista: visita a realidade alheia com todo o descompromisso e a ligeireza que lhe credencia o olho mecânico da câmera. Cai no meio da paisagem como um paraquedista e logo se põe a petrificá-la em clichês policromáticos, segundo o modelo ditado pelos cartões postais. O espaço que ele percorre é tema de fotografia na mesma medida em que é motivo de visita. E quanto mais a natureza se converte em espetáculo, mais o turismo se reduz a um apêndice parasitário da indústria do filme fotográfico.

Haverá algo mais banal do que uma coleção de fotografias do litoral Norte e Nordeste do País? O fotógrafo Arnaldo Pappalardo, entretanto, não aceita essa fatalidade e considera que o clichê pode ser perfurado com uma atitude de inconformismo contra a banalização da paisagem. Para prová-lo, ele botou sua Leica nas costas e refez todo o trajeto do turismo de massa, durante dois meses de férias. Fotografou, entre outras, as praias de Trancoso (Bahia), Morro Branco (Ceará), Recife, Olinda e até Santos. Apontou sua câmera para os estereótipos da foto turística, tais como barraquinhas de refrigerantes, vendedores de doces, barcos a vela, pescadores e suas redes de pescar. O resultado pode ser conferido na exposição que o Masp promove.

A mesma paisagem vulgar que enfeita os álbuns de recordações ressurge agora transfigurada em estranhas aparições. Pappalardo procura desautomatizar a visão para fazê-la penetrar nas formas das coisas, livre da camisa de força da convenção. Enquadra os motivos em posições inesperadas, recorta-os de forma desconcertante a compõe arranjos originais tanto na superfície do quadro quanto na profundidade. Não têm escrúpulos de trazer à cena as manchas desmaterializadas de um urubu pousando na praia ou de um surfista caindo da prancha, ambos borrados em virtude da baixa velocidade do obturador. Tira o melhor proveito da luz tropical, construindo painéis de cores berrantes, em composições quase geométricas.

Cada foto é, portanto, um achado em termos de quebra das expectativas da foto turística convencional. Ela visa sempre desespetacularizar a paisagem, às vezes com um senso de humor corrosivo, como acontece quando enquadra tão simplesmente uma galinha sobre a textura de uma parede azul, ou um peixe morto na areia, ou ainda um absurdo busto grego erguendo-se sobre a verdura do mar tropical. O único senão que poderíamos apontar é a fixação de usar apenas a luz natural nas tomadas à beira-mar: o sol a pique produz sombras nos rostos das pessoas, tornando ilegíveis as suas fisionomias. Um simples rebatedor de luz poderia ter evitado esse efeito irritante, sem comprometer a descontração da cena.

A psicologia nos ensina que o mundo se impõe aos nossos olhos em determinados moldes perceptivos, conhecidos como as suas “formas pregnantes”. Essas formas são estruturas convencionais que se fixam em nossos olhos de uma forma tão imperiosa, que só através da resistência do observador se pode vencer a sua imposição. A invenção não consiste em outra coisa que um esforço para vencer as formas pregnantes da coisa visível e descobrir nela uma nova configuração possível. Essa é justamente a virtude maior das fotos de Pappalardo: elas tomam como tema motivos extremamente carregados de moldes perceptivos, para em seguida quebrar a sua hegemonia com a reinvenção do olhar.

Arlindo Machado