TENSÃO CALMA
A TRAJETÓRIA.

Arnaldo Pappalardo é um caso singular na fotografia brasileira. Há 25 anos atuando no mercado profissional da publicidade, reaparece de tempos em tempos como um dos mais criativos fotógrafos do país. É o que comprova com este livro, que tem como base um novo ensaio exibido na Pinacoteca do Estado de São Paulo. No conjunto de imagens aqui apresentado, o artista paulistano conjuga a técnica e a erudição com a atitude de quem questiona o fazer fotográfico, numa permanente e rara reinvenção de seu ofício.

Como arquiteto que é, formado na Universidade de São Paulo em 1979, Pappalardo revela um cuidado em manter sua forma de olhar para diferentes possibilidades visuais a fim de criar imagens com a máxima precisão e simplicidade. Ele tem uma extraordinária capacidade de isolar as características essenciais dos motivos fotografados.

Na origem do projeto, o fotógrafo pretendia rever todo seu trabalho com o olhar de hoje, distanciado e experiente. Na procura de novos e inesperados nexos com a sua própria fotografia, ele buscava os elos que tecem a trama do seu complexo inventário fotográfico. Para empreender essa jornada, Pappalardo cercou-se de um tema que o acompanha desde sua primeira exposição. Em sua mostra inaugural, ele já se nutria de um texto do pintor norte-americano Richard Diebenkorn (1922-1993). Nele, o expressionista abstrato definia sua arte como um registro que provocava a relação “tensão sobre a calma”. Essa ideia, associada às influências de alguns artistas seminais – Diane Arbus, Irving Penn, Robert Frank e Lee Friedlander –, foi decisiva para sua trajetória.

Apesar dos diálogos com a pintura de Diebenkorn e com alguns mestres da fotografia, Pappalardo sempre nos surpreendeu por sua liberdade autoral, pois estabeleceu desde suas primeiras imagens uma leitura do mundo visível centrada nos princípios da precisão técnica e da dissonância estética. Revelou sempre a clara intenção de desestabilizar os cânones da fotografia e produzir imagens que, de algum modo, provocassem incertezas.

À época de sua primeira exposição, realizada na Fotogaleria Fotoptica (SP), em 1982, o então crítico do Jornal da Tarde Moracy de Oliveira assinalou: “Pappalardo recusa a simples aparência do real, comum a todos. Nos cortes agressivos ou nas composições convencionais essa recusa se mostra como tensão contida, como reflexão silenciosa, e cada fotografia parece conferir individualidade e segurança ao seu olhar”.

Em sua segunda exposição, no Masp, em 1984, Pappalardo experimentaria outro registro, ao investir em fotografias de paisagens. Para tal, ele havia percorrido o litoral brasileiro, decidido a explorar a paleta forte do ektachrome e produzir imagens que remetem aos cartões-postais que povoam nosso imaginário. Ao comentar a mostra, na Folha de S. Paulo, Arlindo Machado destacou: “Pappalardo procura desautomatizar a visão para fazê-la penetrar nas formas das coisas, livre da camisa de força da convenção. Enquadra os motivos em posições inesperadas, recorta-os de forma desconcertante (...) pois ele visa sempre desespetacularizar a paisagem”.

Foi na Galeria São Paulo (1988), porém, que Pappalardo procurou formular novos procedimentos de produção imagética, buscando o esgarçamento da linguagem fotográfica. Ele apresentou uma coleção de fotografias que se aproximava dos conceitos de assemblage e de objets trovés. Objetos encontrados e coletados aleatoriamente nas ruas da cidade são apresentados num fundo neutro. Os registros monumentais do lixo da sociedade adquiriram nova materialidade na fotografia do artista, que novamente provoca e atordoa o espectador.

Um passo adiante seria dado em exposição na Galeria Millan (SP), em 1994, quando Pappalardo revela-se totalmente experimental. Com lucidez deliberada, na mostra ele ilustrava como o poético se desenvolveu na fronteira entre fotografia como extrato do visível (a imagem em si) e sua materialidade no espaço. As fotografias apresentadas ocupavam os espaços de forma insólita, aproximando-se da ideia de instalação.

Ele também participou, dois anos depois, do projeto Arte/cidade, em São Paulo, com uma série em que imaginava uma arqueologia do futuro, na qual objetos emergem de terras pigmentadas com cores berrantes a fim de questionar a dimensão da cultura material. A incoerência e a aflição da visão, diante de objetos fora do seu lugar previsível, é que abre a possibilidade de compreensão do porquê da utilização de uma técnica exuberante para expressar a inutilidade do objeto evocado como memória e documento.

Um ponto marcante na trajetória do fotógrafo seria a sua segunda exposição na Galeria São Paulo, em 1998. Nela, exibiu, corajosamente, sete imagens gigantescas ampliadas em tecido, retomando a ideia dos artistas da Renascença que elaboravam seus trabalhos em enormes afrescos. A escala das fotografias dispersas pelo espaço da galeria propiciava ao visitante sensações paradoxais, um estar longe e um estar perto, sentir-se dentro e sentir-se fora, ora percebendo a imagem como parte do ambiente, ora se sentindo parte dela. Mais uma vez Pappalardo questionava o ato fotográfico ao recusar a lógica do processo estabelecido para aceitar suas falhas intrínsecas – reflexos, distorções, pequenas alterações de cor, entre outros –, surgidas ao longo do processo de impressão. Ele decide assumir tais ruídos como recursos de linguagem decorrentes da espontaneidade do acaso. Diante dessa inevitabilidade, ele celebra a rebeldia e proclama que “a fotografia não é exatamente aquilo que você quer que ela seja, tem sua autonomia. Por mais construída que seja uma imagem, sempre há nela uma grande dose de acaso”.

Comentar o percurso do artista, mesmo que rapidamente, foi uma estratégia que utilizei neste texto com a finalidade de consignar seu espírito crítico, inventivo e em permanente inquietação. Após dez anos de sua exposição mais recente, Pappalardo novamente provoca e oxigena a fotografia brasileira. Tensão calma explora e sintetiza com mais vigor as experiências anteriores.

TENSÃO CALMA.

As imagens produzidas especialmente para a exposição e para este livro, divididas em três diferentes gêneros da fotografia, provocam de maneira drástica nossa percepção de tempo e espaço. Mais: subvertem a ideia do que é fotográfico, ao ampliar os limites dominantes daquilo que pode ser objeto da própria fotografia.

Na primeira série, o artista explora, deliberadamente, a ambiguidade visual da fotografia, criando grandes manchas abstratas que são apenas detalhes imperceptíveis ao olho comum, de uma matéria-prima que adere a superfície do asfalto que cobre as ruas paulistanas. Ele nos coloca diante de uma situação de enfrentamento e choque. Suas fotografias do chão foram produzidas com câmera de grande formato, cinco por sete polegadas, lente normal de alta qualidade e boa resolução, a poucos centímetros de distância. Antes de montar o equipamento, ele selecionou o detalhe a ser fotografado e posicionou o eixo da objetiva perpendicularmente à cena, de modo a produzir uma imagem de topo, que possibilitou uma visão de toda a extensão do plano recortado pelo enquadramento. A focalização perfeita produziu uma incrível textura na imagem.

A opção pelo detalhe quase invisível ao olho humano cria a ilusão de uma paisagem aérea de longa distância na qual nada identificamos. Essa perda de referência estimula a percepção do espectador, confundindo-o, pois a cor não define nem circunscreve essa irreconhecível paisagem. A cor como elemento essencial e descritivo não provoca a experiência da visão imediata e isso perturba a leitura da imagem: a cor laranja em tensão com a verde, o preto denso e texturizado em dissonância com a irregularidade do traçado da linha branca.

Esse registro foge dos métodos consagrados da fotografia paisagística de fácil identificação e gera desconfiança. Pappalardo consegue ampliar nosso fascínio diante do desconhecido e essas abstrações eloquentes trazem uma nova maneira de experimentar a cor, agora como experiência do registro da forma. Abstrações poéticas e registros dramáticos de uma pequena fração do espaço urbano. Essa imprecisão das manchas, as linhas de contorno, as texturas exageradas trazem uma sensação tátil à fotografia. Ou seja, criam uma espécie de materialidade à percepção.

No mundo contemporâneo não há mais lugar para o rigor das linearidades previstas, pois as imagens vagam diante dos nossos olhos. Ele assume que o visível se concretiza nas bordas daquilo que se acredita conhecer.

Na segunda sequência de fotografias, Pappalardo provoca o espectador ao inverter o eixo de leitura das imagens. Do extremo close de detalhes do asfalto paulistano ele propõe uma brusca passagem a registros bem verticalizados de edifícios, embebidos nos grandes vazios do silêncio da noite. Esse movimento, semelhante a um zoom out cinematográfico, é mimetizado pelo projeto gráfico do livro, que promove, a começar pela capa, um duelo constante entre o horizontal e o vertical.

As imagens iconizam o espaço urbano central como um lugar fantasmagórico, que remete à metrópole moderna dos filmes noir e dos quadrinhos expressionistas. Lugar público de primeira grandeza, a São Paulo de Pappalardo tem identidade forte. Os registros noturnos do centro da cidade provocam a memória daqueles que a reconhecem como o espaço de autenticidade. As fotografias, realizadas com longo tempo de exposição, acentuam a verticalidade da metrópole moderna.

O uso da câmera frontal centraliza o edifício e enfatiza a monumentalidade das construções. Mas, curiosamente, nos engana e provoca uma sensação de câmera baixa. Vemos aqueles prédios imponentes, sóbrios e abandonados como monolitos negros esculpidos pela luz dispersa na noite. É notável a força expressiva dessa série, pois, por meio de uma encenação e ambientação natural, registra simultaneamente a imobilidade e o vazio. Tome como exemplo a fotografia do edifício situado na esquina da Quintino Bocaiúva com a José Bonifácio. Ela resulta de uma longa exposição, que consegue trazer para a matriz negativa tanto o preto profundo que emana da noite quanto o volume fugazmente iluminado pelos clarões que lampejam o espaço de tempos em tempos. A câmera está disposta acima do ponto de vista (o fotógrafo se posicionou numa escada a dois metros e meio do chão) e, paradoxalmente, a imagem produz de novo um efeito de visão de baixo para cima, realçado pelo uso técnico da báscula da câmera, que corrige as distorções da perspectiva e torna paralelas as linhas verticais.

A cidade parece ser habilitada por espectros que marcam sua passagem e são percebidos exatamente nas ruas vazias que detêm o fluxo fantasmagórico indicativo de vida. A frontalidade do registro fotográfico torna a imagem mais perfeita e cria uma geometria temporal que nos remete ao passado. Uma espécie de pulsão para produzir a imagem do presente com uma nostalgia do que já passou.

Como Atget, ele se perde nos labirintos do velho centro de São Paulo e cria poderosas imagens em preto-e-branco, nas quais é possível detectar que o controle técnico impecável revela a imponência do desenho e da arquitetura de uma cidade moderna. O mundo visível se apresenta como objets trouvés que, no documento fotográfico de Arnaldo Pappalardo, adquirem um halo de transcendência.

A série dos retratos marca uma nova experiência perceptiva sensorial na obra de Pappalardo. Ele não mais dirige um modelo profissional, extremamente colaborativo na criação de uma imagem suspeita, que visa a atender ideias predeterminadas, mas produz retratos que denotam uma inquietude desafiadora. A escolha das locações pautou-se pelo acaso e pelo prazer da descoberta; os retratados são pessoas simples e desconhecidas. Pappalardo testa sua curiosidade até o limite da natureza essencial da realidade, aliás, a mesma que o levou para as áreas da região central da cidade, abandonadas pelo poder econômico, resultando em uma crônica imagética desse espaço.

Sua abordagem lembra a dos retratistas mais controvertidos, dentre eles Diane Arbus, que defendia a ideia de que “a fotografia é um segredo sobre um segredo. Quanto mais ela te informa, menos você sabe”. Na verdade, ambos, sujeito e fotógrafo, têm plena consciência de que devem revelar-se para a câmera e um para o outro. Essa cumplicidade pode ser aferida nos retratos de Pappalardo, pois seus personagens transitam pela periferia do sistema e permitem um registro naturalista e sem intervenções, o que torna as imagens mais críveis.

Na maioria dos retratos podemos acompanhar a habilidade do fotógrafo em utilizar a câmera posicionada frontalmente ao sujeito de sua imagem. Como se sabe, a visão frontal preserva a identidade daquilo que se fotografa. Veja as imagens que abrem e fecham a série, de dois homens que se apóiam em vassouras. Esses retratos nos dão a exata noção do tempo circular proposto.

Igualmente “circular” é a relação quase hipnótica entre o fotógrafo e o fotografado. Que espécie de cumplicidade existe no exato momento do retrato? Como é possível entender a existência dessas pessoas que, ao se revelarem, ocultam seus segredos e experiências? Pappalardo consegue nos envolver justamente porque ele circunscreve seu retrato em amplos ambientes, onde é possível estabelecer relações. Ele procura não arranjar a cena; busca uma relação direta com seu personagem. Quando olha através do visor, tecnicamente tudo está sob controle, mas o que está diante dele é incontrolável. O grande mistério do retrato fotográfico é o registro desse tempo mágico, no qual não se perde o magnetismo do momento. Ele não rompe esse equilíbrio e assume, dessa forma, uma postura mais purista.

A senhora japonesa, por exemplo, aparenta certa tensão diante da câmera, mas o entorno possibilita estabelecer relações formais e semânticas que enriquecem a leitura da fotografia. Ela se deixou flagrar em seu pequeno ambiente de trabalho, permeado de referências religiosas, sejam os adesivos do cristianismo no poste à esquerda, seja a espada de São Jorge que emerge do prato da balança. O assento desgastado pelo tempo se conecta com as velhas mãos relaxadas sobre o avental azul. A rigidez da postura contrasta com o excesso de elementos da cena. A aparente calma expressa, na verdade, o jogo tenso e ambíguo entre ela e o fotógrafo.

A história de cada personagem pode ser contada a partir desses objetos dispostos em seu entorno. Alguns ambientes, repletos de peças tecnológicas, nos remetem ao passado. Em outros, janelas e espelhos reverberam uma espécie de metalinguagem. Cada retrato exibe uma leitura complexa, pois os elementos que o compõem viabilizam uma narrativa cruzada de referências.

Articuladas entre si, as três séries provocam inquietude e instigam o leitor. O que ele propõe é uma viagem inspiradora através de imagens nas quais é possível celebrar a cidade de São Paulo, alguns de seus habitantes e detalhes imperceptíveis. Na sutileza das diferenças verificamos que o artista busca discutir, à sua maneira, temáticas aparentemente desconexas. As séries potencializam uma visão autoral de inquestionável singularidade, em que a composição precisa e sensível é um índice que nos possibilita uma estimulante reflexão sobre o espaço e o tempo na fotografia contemporânea.

O ensaio tem algo de misterioso, pois, além das imagens que nos remetem ao silêncio dos diferentes ambientes, a atmosfera enigmática nos permite estabelecer diversas relações poéticas. A confluência de elementos discretos – texturas, linhas, planos, movimentos, formas – e seus efeitos, presentes nas fotografias, podem ser recuperados de diferentes maneiras: no que é efêmero e transitório no registro do retrato e na noite passageira; no que revela o detalhe tornado visível e gigante; na opacidade, na transparência e na materialidade da própria fotografia.

As três séries produzidas para a exposição e o livro Tensão calma denotam a pureza das formas registradas, uma composição limpa, os matizes sutis de luz e sombras. Tudo isso parece nos levar a uma possível depuração na experiência do ver. Em contrapartida, nessa estética manifestada pela beleza dos valores formais e tonais existe a tensão criada pela atitude provocativa de Pappalardo. Suas fotografias se fundem num jogo de recorrências cuja finalidade é evocar surpresa e transgredir o óbvio aparente para criar evidências de que o olho do cotidiano nada vê. A tensão calma também vem das relações entre a cor e o preto-e-branco, pois as imagens estabelecem relações em diferentes níveis de abstração e questionam o conceito de realidade na fotografia contemporânea. O visível torna-se enigmático. Cabe a nós percorrer os mistérios e os encantamentos propostos por Arnaldo Pappalardo, que em sua trajetória coerente sempre se dedicou a ampliar os limites do fazer e do pensar fotográficos.

Rubens Fernandes Junior