Arnaldo Pappalardo
A tavoletta e os novos dispositivos de visão

A exposição que Arnaldo Pappalardo concebeu para o Museu da Casa Brasileira aproveita aspectos arquitetônicos da edificação—como a simetria da fachada e das salas, as proporções dos ambientes e do jardim, que aludem às vilas palladianas—para revisitar o momento em que, em pleno Renascimento italiano, eram estabelecidos os princípios que determinariam o modo moderno de ver e organizar o espaço: a perspectiva. E também para reconstituir os dispositivos técnicos que permitiram ao observador estabelecer com precisão o posicionamento dos objetos na paisagem, a partir do seu ponto de vista: a câmera escura e, sobretudo, a tavoletta, o que capacita o artista a promover uma extensa reapropriação crítica, experimental, dos múltiplos aparatos e agenciamentos utilizados na produção contemporânea de imagens.

No início do século XV, Brunelleschi pintou um pequeno painel, uma vista do batistério San Giovanni, em Florença, tal como o observador poderia apreender colocando-se num ponto determinado, na porta da catedral de Santa Maria del Fiore. Medindo cerca de 40 cm de lado, a tavoletta é própria para ser empunhada com o braço esticado. O espectador devia contemplá-la refletida num espelho colocado diante da superfície pintada, paralelamente a ela, por meio de um orifício aberto no meio da tábua. Os dois planos são dispostos de tal maneira que a imagem do desenho no espelho é prolongada pelas imagens da paisagem urbana.

O recurso do orifício na tavoletta obrigava o espectador a observar a pintura, refletida no espelho, do mesmo ponto de vista em que se colocara o pintor. Ou seja: o pequeno furo corresponde à altura proporcional àquela em que ele tinha se posto para desenhar. A linha reta que liga o olho do pintor ao centro da cena retratada é o eixo da pirâmide visual cujo vértice coincide com o ponto de fuga.

A perspectiva organiza o espaço como um cubo, delimitado pela pirâmide ocular, uma rede de linhas traçada desde o ponto de vista—a visão euclidiana do espaço. No interior desse cubo, todos os elementos são mensuráveis na mesma escala, os lugares e os objetos se encontram no ponto de concordância das coordenadas geométricas, verticais e longitudinais, seja qual for a distância real das coisas. A perspectiva permite estabilizar as relações de tamanho que o olho capta, reduzir as dimensões afastadas a uma mesma escala.

A visão em perspectiva ressalta a simetria e a proporção dos elementos. Ela permite estabelecer com exatidão a diminuição ou o aumento das coisas, resultante, para o olho humano, do seu afastamento ou aproximação. Edificações, planícies, montanhas têm o tamanho correspondente à distância em que se encontram. A perspectiva fornece a regra da diminuição dos objetos—uma escala—em função da distância em que são vistos. O olhar obedece à regra métrica da perspectiva. O observador é livre para contemplar a paisagem, mas ao se dirigir a um ponto, o batistério por exemplo, o entorno se organizará para o olhar, conforme um esquema determinado a priori, segundo uma perspectiva precisamente enquadrada.

O essencial é que o ponto de vista escolhido pelo pintor pudesse ser deduzido da própria pintura, feita na tavoletta. O que implicava que a pintura permitia situar o ponto de vista (o observador), localizá-lo no espaço real, com relativa precisão. O problema da distância entre o ponto de vista e o objeto é o nó da questão. O elemento situado ao longe serviria de referência para determinar o ritmo de redução das coisas, em função do afastamento. Onde se situava o ponto de fuga no painel pintado em perspectiva? A posição que ele atribui ao pintor, na porta da catedral, implica que esse ponto deveria ser marcado no centro geométrico da tavoletta.

Uma pintura construída em perspectiva requer ser vista a partir de um determinado lugar, estabelecido por um sistema de coordenadas cartesianas retangulares. O surpreendente, no dispositivo engendrado por Brunelleschi, é que o lugar em que deve se colocar o observador, esse lugar único de onde a pintura requer ser vista para produzir o efeito de perspectiva, encontra seu correspondente no quadro. O ponto de vista coincide com o ponto de fuga das linhas de projeção. A invenção técnica de Brunelleschi consiste em abrir um orifício no centro do painel, no local do ponto de fuga, para demonstrar que este corresponde ao ponto de vista.

Portanto, a perspectiva é também a imposição de uma ordem à paisagem, a partir de um olhar privilegiado. Na perspectiva, há duas constantes: centro (ponto de vista dominante) e reticulação do espaço (homogeneização euclidiana). A tavoletta, um quadro que se coloca no lugar de uma construção existente (ou que ainda nem foi edificada), é uma ilusão antecipada, que contribui para a implantação efetiva do desenho urbano que retrata. O observador vê toda a cena se ordenar segundo sua visão. A disposição das construções, colocadas conforme a trama ortogonal do piso, evidencia a força do dispositivo de visão, do desenho.

Mas há um elemento que resiste a ser enquadrado nesse dispositivo geométrico do espaço: as nuvens no céu. Na tavoletta, no lugar correspondente ao céu, havia uma superfície de prata polida, que refletia o céu real, carregado de nuvens levadas pelo vento. O céu não é pintado, mas espelhado na superfície polida. O observador, portanto, vê o céu como um reflexo do reflexo.

A perspectiva só reconhece as coisas que ocupam um lugar e cujo contorno pode ser definido por linhas. O céu não ocupa um lugar, é irredutível a toda medida, não se deixa conhecer por comparação. O céu não pode ser representado, nem se pode traçar o contorno das nuvens ou analisar suas formas em termos de superfícies.

As nuvens, tal como as sombras e os relevos rochosos, pertencem ao universo do que não pode ser pintado. O que não se deixa enquadrar pelas linhas cônicas e pelos planos de projeção, o que perturba o espaço tectônico ortogonal e fechado da perspectiva.

Os problemas técnicos e teóricos colocados pela figuração, numa tela bidimensional, de um elemento celeste, de um movimento aéreo, são fundamentais na construção do sistema de representação do espaço em perspectiva. A representação do elemento aéreo, como as nuvens, estes “corpos sem superfície”, não estaria para além das possibilidades da perspectiva, que opera excluindo de seu campo tudo que escapa à sua jurisdição? Como representar, traço a traço, o que não tem contornos?

A máquina de perspectiva de Brunelleschi é projetada para colocar objetos corretamente no espaço, cada coisa sendo definida por ter um lugar. Essa é a razão pela qual o céu não é representado, mas mostrado diretamente: o céu não tem um lugar. Não pode ser medido ou comparado, portanto não pode ser representado pelo sistema de proporções que define o espaço ordenado pela visão em perspectiva.

A originalidade da tavoletta está em construir a perspectiva e, ao mesmo tempo, dar lugar a este fundo não dominado, irredutível às suas regras geométricas e que só poderia ser mostrado por meio de um espelho. O “espelho de nuvens” exibe tudo aquilo que parece escapar à formatação e ao posicionamento em escala, de acordo com medidas de distância. O céu de Brunelleschi é meteorológico, onde as nuvens se deslocam, empurradas pelo vento, escapando às medidas da geometria. As nuvens em movimento traçam uma linha de fuga.

O dispositivo criado por Pappalardo é composto, porém, por diferentes agenciamentos técnicos e imagéticos. Além da relação com a arquitetura do lugar, o artista utiliza diversos equipamentos (diferentes câmeras de cinema, de vídeo e de fotografia), aparatos de visualização e suportes (telas, backlights, caixa de luz e vidros) para produzir desde imagens fotográficas simples até instalações complexas, dotadas de vários elementos.

A exposição ocupa três salas e o jardim da casa neopalladiana. Na sala central, uma série de fotografias remete diretamente ao princípio da tavoletta. São fotos, feitas com chapas 8 × 10, num cruzamento no centro da cidade, em que um grande espelho (1 m × 1,5 m) é colocado no local, de maneira que cada imagem tem uma parte espelhada, refletindo o trecho da cidade que está atrás da câmera. Conforma uma paisagem urbana composta, em que não se sabe qual é a parte espelhada. Volumetrias rearticuladas, misturadas; edificações clássicas e modernistas.

Trata-se de um espelho de primeira superfície, com a face especular em primeiro plano, de maior definição possível, o que permite foco no infinito. As bordas do espelho, porém, ficam ligeiramente desfocadas, de modo que se veja o dispositivo físico armado no local, que se perceba que não se trata de uma mera colagem de imagens.

O ponto de fuga, resultante da convergência das linhas paralelas existentes na paisagem, é localizado na composição, de maneira que a câmera é alinhada por ele. As fotos são feitas sem qualquer ajuste digital da perspectiva. Na exposição, as imagens serão dispostas de modo que o ponto de fuga corresponda ao ponto de vista do observador.

A sequência de imagens em perspectiva compõe um movimento do olhar em 360 graus, uma panorâmica. Ou seja: todas as tomadas foram feitas praticamente do mesmo lugar, com pequenos deslocamentos para a obtenção de melhores vistas. Mas é uma panorâmica composta por vários segmentos desconexos. Cada perspectiva contém, na sua parte central, um recorte correspondente à imagem espelhada do que está atrás. A resultante então é uma paisagem em que áreas distantes aparecem próximas e áreas vizinhas aparecem afastadas.

O espelho embaralha a perspectiva convencional, levando o ponto de fuga para outro lugar. Na tavoletta, o espelho é frontal, a imagem refletida coincide com a perspectiva. O que está atrás é igual ao que está na frente. Aqui é diferente. O espelho é colocado em ligeira angulação em relação ao plano frontal da imagem, de modo que o que está refletido não corresponde exatamente ao restante da paisagem. As fachadas retangulares das edificações, de linhas ortogonais, evidenciam logo a torção. Ao se girar o espelho, ocorre um deslocamento do ponto de fuga.

As perspectivas reproduzem o dispositivo da tavoletta, inserindo um novo trecho na paisagem. Aqui, porém, quebra-se o ilusionismo ótico do esquema renascentista, devido à fragmentação da imagem, a evidente descontinuidade da paisagem retratada. Se retoma o aparato de Brunelleschi, fazendo uma verdadeira homenagem ao primeiro dispositivo moderno de visualizar a cidade, Pappalardo também faz uma desconstrução da tavoletta, revelando como funciona o seu mecanismo de representação.

Ao lado, na mesma sala, temos outra instalação: fotos intensamente coloridas de uma encenação teatral, vista dos bastidores, feitas com uma câmera panorâmica. O olhar tem de esgueirar-se através de frestas entre os corpos e objetos que abarrotam a cena. Tal como no conhecido quadro de Velázquez, em que o espaço é organizado pelas perspectivas traçadas pelos olhares dos diferentes personagens, todos estão voltados para um ponto. Mas aqui não é possível, devido às obstruções, ver o que estão olhando. Enquanto as perspectivas com espelho traziam uma vista, ainda que problematizada, para o infinito, nesta imagem o ponto de fuga—o princípio constitutivo da perspectiva—está oculto.

A instalação é composta por uma tela suspensa, inclinada, flutuando no ar. Nela são projetados, alternadamente, um antigo filme feito em Super-8, preto e branco, da janela de um avião. Enquadrado pela asa do avião, vemos o céu, com nuvens. No outro filme, este em alta definição, colorido, um aríete inserido no que parece ser um fluido deixa escapar uma substância vermelha, que vai progressivamente tomando toda a tela, como uma nebulosa, como nuvens. Uma vez mais, as nuvens. Aquilo que não se deixa enquadrar.

Na instalação, ainda temos duas outras fotos, retratando detalhes de uma pintura renascentista, de colunatas e tapeçaria barroca. Superfícies opacas, sem profundidade, imagens de intensa materialidade. Nessa segunda metade da sala se configura um outro arranjo espacial, oposto àquele dado pela perspectiva clássica, baseado na densidade da paisagem, na obstrução do olhar. Redução do espaço ao plano, do qual só as nuvens conseguem fugir.

Outras duas salas, situadas simetricamente nos dois lados da entrada, compõem a exposição. Na sala à direita, domina uma grande tela com a projeção de uma sequência feita em HD. Contra um fundo de nuvens, flutuam surrealisticamente diferentes objetos, rejeitos encontrados na rua. Não há qualquer sentido de escala, nenhum posicionamento dos objetos no espaço. Aqui não há nenhuma possibilidade de constituir perspectivas. As coisas estão mergulhadas num mundo sem medida, em que essa organização não é possível: o céu com nuvens.

Na outra sala, à esquerda, dispositivos apresentam soluções técnicas completamente distintas. Uma grande foto, um cromo ampliado diretamente no vidro, mostra uma paisagem com o céu nublado. Numa projeção, uma sequência de fotos antigas sendo ajustadas numa mesa de luz, outro aparato de visão. Num backlight, no chão, uma fotomontagem de uma vista de paisagem num aquário, com peixes. Outras duas fotografias mostram pessoas observando o mar, com pássaros riscando as nuvens pesadas. Tudo é feito de superfícies envidraçadas e entrecortadas, reflexos e espelhamentos.

Por fim, no jardim, rompendo o eixo organizador da edificação e a simetria do espaço, Pappalardo instalou uma câmera escura, construída numa grande tenda, de 4m de diâmetro e 2,5m de altura, semelhante às que se via nas cidades italianas da época, em ocasiões festivas. Uma edificação circular, um polígono de 12 lados, permitindo diferentes visadas.

O dispositivo baseado num orifício pelo qual se captura a imagem de uma paisagem constitui o princípio protofotográfico da camera obscura. Trata-se de uma caixa ou compartimento fechado com um pequeno buraco (pinhole) que permite a passagem de luz, que se projetando na parede ao fundo. Era usada para construir perspectivas, possibilitando ver a ortogonalidade em profundidade, a localização dos corpos no espaço.

Ao contrário da tavoletta, aparato muito mais complexo, um dispositivo ótico-geométrico que ordena a disposição dos elementos no espaço externo, a câmera escura é uma abertura para permitir a entrada de luz, formando uma imagem num anteparo escuro. Traz para o espaço interno, para o lugar da observação, tremulando em imagens fugidias, um recorte do mundo.

Na câmera escura, as imagens se formam só por um furo feito nas paredes, sem o uso de lentes. As imagens projetadas são, portanto, difusas e invertidas. Nesta reconstrução do dispositivo, Pappalardo instalou painéis difusores, de 80 cm cada, nos quais se pode ver mais claramente as imagens.

São três furos nas laterais e outros três no teto. Através dos furos de cima, a luz projeta o céu, as nuvens. Sempre as nuvens. Nas laterais, espelhos colocados do lado de fora vão também refletir o céu. Colocados a diferentes distâncias dos furos, eles fazem distintos recortes na paisagem. Para quem está observando as projeções dentro da câmera escura, têm-se diferentes relações de escala e composição. Também o dispositivo da camera obscura é reinventado por Pappalardo.

Por meio da câmera escura e da tavoletta, da edificação palladiana; da fotografia, do vídeo e do filme; da tela, do vidro e do espelho, Pappalardo está focando um elemento constitutivo da condição contemporânea: a percepção visual, a imagem.

Nelson Brissac Peixoto